Naquela manhã fria do mês de março acordei às seis horas, e fui tomar café na casa de meu pai e tomar-lhe emprestado vinte reais para pôr gasolina na moto. Um mestrado acaba com todas as nossas economias. O café reforçado, contudo, revigorou-me as forças e a benção que meu pai me dá é sempre motivo para enfrentar os dissabores da vida. Agora eu estava aceso.
Antes de dar partida na moto, coloquei o capacete (coisa que parece haver causado estranheza nas pessoas que por ali passavam), dei partida e fui abastecer a máquina. Levava comigo também uma mochila contendo papel, caneta, gravador de áudio e um celular, além de três maçãs e uma garrafa com água.
A Boi Morto é a segunda mina de opala mais antiga do mundo (só perdendo para uma mina na Austrália), e a maior em extensão do país. Fica pertinho do centro da cidade de Pedro II, Piauí, a cerca de três quilômetros e meio. Agora estava pronto para a aventura, a primeira ida à Boi Morto como pesquisador.
Dali a uns dez minutos estava eu na bifurcação formada pela estradinha que vai dar na Escola Thomas Kempis e a que vai dar na Boi Morto. Fiz duas fotos, uma delas a da placa de informação da localização da mina e a outra, com a devida permissão, de um rapaz que passava de bicicleta por ali.
Mais adiante passei por outros dois rapazes de bicicleta. Dei bom dia e recebi a saudação em dueto de volta. Quis saber se estavam indo para a Boi Morto. Sim, estavam. Meia hora depois, já na Boi Morto, viria a descobrir que os rapazes tinham ido trabalhar no lugar do pai, garimpeiro, que naquela semana estava impossibilitado do ir para a mina devido a uma doença.
Durante a pesquisa eu viria a descobrir que uma tal ‘doença de garimpo’ acometia muito dos garimpeiros, mas não constava nada nos registros das internações de garimpeiros.
Finalmente após alguns minutos pela estradinha carroçal, surgiu à minha frente a guarita da Boi Morto. A estradinha simplesmente era cortada ao meio por um muro de pelo menos quatro metros de altura e uns dez de largura continuado de um lado e de outro por uma reforçada cerca de arame farpado com estacas de cimento a perder de vista mato a dentro.
Havia dois portões de madeira ripada. Um maior que dava para passar um automóvel (caminhão inclusive), trancado a cadeado, o que impedia a passagem de veículos de quatro rodas.
O menor, apenas no ferrolho. Foi por este que passei empurrando a moto. O guarda armado e que disparara contra uns garotos que andaram por ali pegando calango há umas semanas, não estava mais. O Ministério Público dera razão às comunidades circunvizinhas da mina Boi Morto e mandara os encarregados da mesma retirar o guarda e liberar o portão menor. Antes de prosseguir pelo que seria a última etapa da viagem, fiz alguns registros fotográficos da redondeza.
E EIS A BOI MORTO
Ao chegar à mina por volta das oito e quinze da manhã, já havia muitos homens trabalhando. Depois alguns me contariam que haviam chegado lá por volta das cinco. A impressão que tive foi de que eram formigas no formigueiro. A imagem é batida, mas por isso mesmo foi essa imagem que se assentou em meu cérebro.
Isso porque logo que se chega à primeira das muitas curvas do último trecho da estradinha que leva o visitante aos barreiros, percebe-se que se está, pelo lado esquerdo, ao sopé de um morro que tem para mais de uns trinta metros. Já pelo lado direito, o talhado quase se perde de vista. Ainda por cima a descida é íngreme, a areia é solta e a estradinha é estreita. Toda atenção é pouca e o aventureiro precisa descer em primeira marcha.
A coisa toda mete mais medo ainda se a pessoa (e este era meu caso) souber do acontecido que há mais de trinta e tantos anos vitimou o engenheiro de mina, Dr. Nilson Lacerda.
Nilson Lacerda era um carioca que à época, havia chegado a Pedro II havia uns dez anos. Era um homem de uns cinquenta anos e pouco. Homem, dado, cordial, popular mesmo. Sua casa situada no quadro da Praça da Igreja era sempre movimentada. Tanto recebia a sociedade de Pedro II para jantares e reuniões beneficentes, como recebia os gringos e brasileiros de outras partes do país que vinham comprar opala.
Encarregado da Boi Morto, o engenheiro coordenava a extração da mina de opala na qual trabalhavam para mais de duas centenas de homens, a grande maioria moradores de Pedro II, mas também havia alguns vindos de outras cidades, como João Damião, vindo de Piripiri.
Pois bem, Dr. Nilson era, por assim dizer, um homem muito querido na cidade, um benemérito, um benfeitor, pois que também ajudava as pessoas despossuídas dando-lhes dinheiro para comprar remédio, roupa e comida.
Durante os Festejos da padroeira, Nossa Senhora da Conceição, Dr. Nilson praticamente arrematava todas as joias gritadas por Zé Gato e as oferecia ao prefeito, às senhoras dos vereadores, a amigos, enfim. Costumava comemorar seu aniversário natalício dando festas de arromba, regadas a muita comida (capão, leitoa, peru, pato) e bebida pelo meio da canela. Comiam e bebiam o rico e o pobre. Está certo que os pobres ficavam mais contidos na zona do terraço e do quintal comendo os pratos feitos com o auxílio de colheres ou mesmo só das mãos, enquanto os ricos ocupavam as demais dependências da casa, sobretudo se aboletavam nos sofás que o anfitrião fazia vir do Rio de Janeiro e comiam com o uso de talheres, os pratos menos cheios, embora todos bisassem.
(Continua...)
ERNÂNI GETIRANA (@ernanigetirana) é professor pesquisador, poeta e escritor. Pertence às academias APLA e AVAL, ao IHGPI. É autor de inúmeros livros, dentre eles “Debaixo da Figueira do Meu Avô”.